O comum como projeto político constituinte da multidão
1. Trecho do projeto de Estágio Pós-doutoral da pesquisadora Natacha RENA:
"Esse contexto se deve ao fato do poder Imperial abarcar tudo aquilo que representaria o comum numa estratégia biopolítica, ou seja, expropriando as linguagens, símbolos, imagens, enfim, todos os meios compartilhados pelos indivíduos, através dos quais estes tornam-se capazes de se comunicar e de, assim, produzir algo em sociedade. Em tempos de capitalismo cognitivo, criativo e imaterial, a produção do comum baseia-se na colaboração e nos processos criativos e afetivos que incorporam todos os níveis da vida. Todo o tempo é produtivo e o comum que compartilhamos serve de base para a produção futura, numa relação expansiva. Para Hardt e Negri, atualmente essa relação entre a produção, a comunicação e o comum é a chave para entender toda atividade social e econômica própria do capitalismo pós-fordista. [1]
A ampliação desta acepção de biopolítica adotada por Hardt e Negri situam o conceito como algo que acontece plenamente na sociedade de controle, na qual o poder subsume toda a sociedade, suas relações sociais e penetra nas consciências e corpos. Mas a consequência disso é a explosão dos elementos previamente coordenados e mediados na qual as resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de uma sociedade que se abre em redes [2]. Isso significa que o poder desterritorializante que subsume toda sociedade ao capital, ao invés de unificar tudo, cria paradoxalmente um meio de pluralidade e singularização não domesticáveis, incontroláveis e incapturáveis. A multidão que se formou, contaminando e hibridando diversas pautas libertárias e progressistas, vem crescendo e tomando novas formas a cada dia. Para Pelbart (2003) ou para Hardt e Negri (2001, 2005, 2009, 2014), esta inversão de sentido do termo foucaultiano “biopolítica”, pode deixar de ser o “poder sobre a vida”, para tornar-se o “poder da vida”, o que poderíamos chamar também de biopolítica da multidão ou, segundo Pelbart (2003), biopotência.
Assim, dentro deste sistema global enredado pelo Estado-capital, no qual nos deparamos com o Império, não deveria, de modo algum, segundo os Hardt e Negri (2001), nos deixar saudosos das antigas formas de dominação, porque esta transição para o Império e seus processos de globalização e mundialização conexionista, nos oferece novas possibilidades de redes insurgentes que possibilitam a ampliação das lutas pela libertação. Estas singularidades globais que vão surgindo como resistência ao neoliberalismo vêm tecendo uma nova forma de luta que envolve o que chamam de multidão. Para os pensadores estas forças criadoras da multidão que sustentam o Império são capazes também de constituir “um Contra-império, uma organização política alternativa de fluxos e intercâmbios globais. Os esforços para contestar e subverter o Império, e para construir uma alternativa real, terão lugar no próprio terreno imperial.” [3] Os autores afirmam que é na metrópole que as novas configurações de resistência se configuram com maior intensidade, e em tempos de produção biopolítica nas quais as forças produtivas que movem o capitalismo pós-fordista, trabalhando principalmente com ideias, afetos e comunicação, não estão mais simplesmente concentradas nas fábricas, mas sim espalhadas por terreno social urbano, ou seja, por toda a metrópole, lugar privilegiado onde as múltiplas forças residem e interagem [4].
Em todo o mundo, mais visivelmente em alguns países que receberam esta grande investida do capitalismo Imperial como Espanha e Grécia, hoje podemos assistir ao estrago social e econômico destas políticas, que nada mais são do que formas de endividamento do Estado e do cidadão . Com a promessa de desenvolvimento, obras de infraestrutura, projetos para megaeventos, construção massiva de habitação, criaram com eficácia um exército humano endividado e quebraram os caixas do Estado. Estes movimentos insurgentes em todo o mundo, como o que ocorreu a partir do Parque Gezi na Turquia contra a construção de um shopping center em lugar de uma praça pública faz surgir uma multidão enfurecida que percebe, de maneira muito evidente, os mecanismos Imperiais do Estado-mercado que vem expropriando direitos garantidos constitucionalmente e transferindo os bens comuns e a produção do comum para o universo do privado. Mas estas insurgências já prefiguravam uma radicalização popular contra este Estado-capital globalizado desde Seattle, e alguns autores como Hardt e Negri, Lazzarato e Harvey, vêm traçando uma cartografia destas dinâmicas do novo capital, e também da rebeldia popular que insurge quando se retira radicalmente o bem estar social defendido como base constitucional de países democráticos.
Dentro da própria lógica capitalista de produção coletiva, colaborativa e em rede, que é própria da lógica do capitalismo pós-fordista, surgem também novas formas de colaboração e de fazer-com que recusam os mecanismos representativos da democracia burguesa, mesmo quando sob as siglas de esquerda. Estas resistências assistem à expropriação do comum, desde os bens comuns como a água, as florestas, as praças e parques, ou até mesmo a expropriação da produção do comum em processos informais dos novos modos de vida que não cabem na lógica do Estado-capital. Para esta nova geração conectada em redes múltiplas que se superpõem globalmente, a democracia representativa não corresponde mais à produção dos desejos por mais direitos, ou por uma vida na qual não apenas se participa de processos eleitorais garantindo plenos-poderes aos governantes. A crise da representatividade abarca uma crescente necessidade por participação direta, por democracia real, por participação-decisão como palavras inseparáveis. Portanto, independente da crise do capitalismo global, assistimos ao surgimento de uma nova ontologia do precariado própria da multidão, configurada ao mesmo tempo: a) por um homem endividado [5] complemente imerso no capitalismo financeiro, que tem a sua riqueza criativa expropriada constantemente pelo fluxo econômico; b) por um homem constituído pela lógica do fazer-junto, do fazer-com, criativa e colaborativamente.
Para Negri (2010) esta multidão possui também um nome de singularidades não representáveis, que assim como um conceito de classe, é sempre produtiva e está sempre em movimento. A multidão seria então, um ator social ativo, uma multiplicidade que age; seria também o conceito de uma potência que desconfia da representação e em contraste com de povo, porque é uma multiplicidade singular, um universal concreto. O povo constituía um corpo social; a multidão, não, porque ela é a carne da vida e, ao contrário da pura espontaneidade, é como algo organizado num corpo sem órgãos, fora da organização do Aparelho de Estado, ou seja, é um ator ativo de auto-organização, nos introduzindo num mundo completamente novo, dentro de uma revolução que já está acontecendo. A multidão é para o autor, ao mesmo tempo, sujeito e produto da praxis coletiva, assim, como também, cada corpo é multitudinário, ou pode tornar-se uma multidão, formando redes e potencializando contaminações que desejam liberdade na coletividade. A multidão é um monstro híbrido, uma legião, e um projeto que se faz cruzando-se multidão com multidão, misturando corpos operando a mestiçagem e a hibridação, já que o próprio corpo é trabalho vivo e recusa, maquinicamente, a organização constante operada pelo sistema capitalista, portanto, expressão e cooperação, enfim, o poder constituinte da multidão é algo diferente, não é apenas uma exceção política, mas uma exceção histórica, é um produto de uma descontinuidade temporal, radical, metamorfose ontológica, ou seja, a multidão é um nome ontológico de produção de resistências ativas contra sobrevivência parasitárias que constituem a engrenagem da máquina capitalista contemporânea [6].
A partir desta contextualização, para compreender as relações de força na sociedade contemporânea e realizar um diagnóstico mais próximo da realidade das lutas globais, seria preciso investir em um pensamento-ação, através da filosofia-práxis, que possa nos abrir um campo teórico mais complexo fora do universo da totalidade e que nos permita “entrar no mundo do pluralismo e da singularidade, onde as conjunções e as disjunções das entre as coisas são em cada momento contingentes, específicas e particulares e não remitam à nenhuma essência, substância ou estrutura profunda que as possam fundar” [7] Este pensamento-ação nos permite compreender-experimentar a realidade política atual a partir das relações exteriores, fora dos fundamentos, das raízes profundas, dos modelos arborescentes nos quais cada relação só expressa um dos aspectos de alguma coisa. Aqui uma escolha pela teoria pós-estruturalista da multiplicidade, que afasta as relações binárias para compreensão do mundo político, social e econômico, nos lança num campo de pensamento complexo e configurado em múltiplos platôs que se conectam transversalmente. Aponta-se para um pensamento da imanência, através do qual possamos constituir uma ontologia pluralista formada por singularidades que compõem as resistências ao Império neoliberal do capitalismo financeiro, que segundo Negri & Hardt, poderia ser chamado de processos multitudinários, construindo um projeto político de produção do comum.
Hardt e Negri em um pequeno e precioso livro denominado Declaração, escrito após a jornada de acampadas que ocorreram por todo o mundo em 2011, dão continuidade ao projeto de mapeamento da multidão e nos ofertam uma sintética e potente análise dos processos revolucionários ressaltando que a estrutura rizomática multitudinária é coletiva e recusa toda forma de ordenação vertical, assim como, o processo biopolítico não se limita à reprodução do capital com uma nova relação social, mas sim, apresenta também o potencial de um processo autônomo que poderia destruir o capital e criar algo completamente novo. [8]" [9]