Capitalismo cognitivo, neoliberalismo e biopolítica na metrópole contemporânea
1. Trecho do projeto de Estágio Pós-doutoral da pesquisadora Natacha Rena:
"As políticas públicas neoliberais, impostas pelo Estado-capital sobre o território urbano, configuram evidências claras de como a cidade vem se tornando um palco de disputa territorial. Se a fábrica configurava o campo de exploração do trabalho até os anos 70, atualmente o Estado-capital extrai a mais-valia em todo o espaço via empreendimentos rentistas. Em tempos de capitalismo cognitivo, no qual a tendência da produção cotidiana no mercado vem construindo redes de trabalho voltadas para setores criativos e sociais, as biopolíticas implementadas vão consolidando uma dinâmica de produção do espaço complexa e realizando processos de exclusão social em diversos níveis. Compreender estas as novas estratégias de políticas territoriais é fundamental para mapearmos os campos de luta mais importantes em nossos países e em nossas metrópoles. Compreender como estão imbricadas as estratégias de expansão capitalista pelo território utilizando a lógica do planejamento urbano via Parcerias Público Privadas e entender o papel da arquitetura como mola propulsora deste avanço corporativo por todo o espaço urbano, pode nos fornecer um leque de informação para o avanço do debate entorno de novos processos constituintes fundamentais para a consolidação da democracia real e para empoderamento cidadão no contexto da construção coletiva e autônoma das cidades. O que está claramente em disputa, a partir dos movimentos multitudinários detonados desde 1999 em Seatle, que insurgiram na Espanha em 2011 com o 15M e que ganharam força no Brasil a partir de junho de 2013, é, principalmente, o urbano. Urbano aqui entendido como um amplo platô que envolve as ações no espaço-tempo (públicos, privados, comuns) dissolvendo a noção dicotômica cidade x campo, rua x rede, casa x trabalho. Segundo Hardt e Negri, num texto intitulado Metrópoles (Livro: Commonwealth), a metrópole é para a multidão o que a fábrica era para a classe operária industrial, o que poderia nos induzir a pensar nas metrópoles como territórios conectados nos quais as ações biopolíticas e de controle dos corpos e das espécies se dão com maior intensidade. Ao mesmo tempo, poderíamos pensa-las como o lugar no qual a biopolítica das resistências primeiras são também potentes, possibilitando encontros que, apesar de todas as estratégias para evita-los, se dão com maior ênfase em processos constantes de contaminação. A metrópole, para Hardt & Negri,
“poderia ser considerada em primeiro lugar o esqueleto e a espinha dorsal da multidão, ou seja, o entorno urbano que sustenta sua atividade e o entorno social constitui um lugar e um potente repertório de habilidades no terreno dos afetos, das relações sociais, dos costumes, dos desejos, dos conhecimentos e dos circuitos culturais (...) a metrópole é a sede da produção biopolítica porque é o espaço do comum, das pessoas que vivem juntas, compartindo recursos, comunicando, intercambiando bens e ideias.” [1]
Mas sabemos que, a metrópole é também o lugar, por excelência, da expropriação deste comum produzido no encontro e na criação das novas formas de vida. Cidades brasileiras como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte são exemplos de cidades globais eleitas para sediar grandes eventos e para sofrer transformações territoriais via projetos urbanísticos neoliberais em grande escala, e têm se tornado, ao mesmo tempo, celeiro de lutas urbanas e de resistências radicais, conformando sujeitos insurgentes multitudinários que vêm se expandindo e contaminando, não somente os grupos políticos oficiais e não oficiais já existentes, mas trazendo pra dentro das lutas artistas, pensadores, professores universitários, grupos organizados e desorganizados das favelas, advogados. Também podemos observar que, em estágio avançado de expropriação do comum, cidades espanholas como Madrid e Barcelona, após longo período de expansão do urbanismo neoliberal e da edificação de inúmeros grandes projetos de infraestrutura, estradas, edifícios culturais, aeroportos, habitação em grande escala, hoje assistem ao abandono de diversos equipamentos públicos construídos como a ponta de parcerias público privadas que iriam reformular grandes áreas urbanas e endividar profundamente o país. Mas é neste estágio avançado do neoliberalismo urbano, que temos também grandes revoltas em massa, ocupas que se expandiram pelas metrópoles e até mesmo organizações sociais que se transformaram em partidos políticos para disputar o poder com o Estado-capital que provocou uma enorme crise econômica, política e social no país. É na metrópole que estes movimentos insurgentes se organizam, seja por novos modelos de representação político-social, seja por novos modos de constituição do espaço público. O 15M auxiliou na organização também de muitos coletivos de arquitetura e urbanismo e potencializou as ações tecnopolíticas em rede destes que atualmente estão envolvidos na construção de outros modos de pensar a cidade, modos multitudinários, mais colaborativos, mais horizontais, mais democráticos. O sistema capitalista global contemporâneo, que conecta indissociadamente Estados e empresas, pode ser também denominado de Império ou neoliberalismo. Diferente do capitalismo fordista, no qual a mais-valia era prioritariamente explorada via a força de trabalho nas fábricas, atualmente se dá via capital em expansão dirigindo a exploração para todo o território metropolitano, dentro e fora das fábricas. Além disto, o tempo do trabalho envolvido na produção do capitalismo industrial referia-se ao tempo da jornada oficial das leis trabalhistas. Atualmente, o tempo de expropriação do capitalismo pós-fordista, imperial, neoliberal, ocupa todo o tempo de nossas vidas. Além de vermos configurar (via Estado-capital) a construção de sujeitos dóceis (próprios da sociedade disciplinar em que o controle incidia – e ainda incide – diretamente sobre os corpos), estamos imersos em práticas de controle mais sutis e flexíveis, uma tomada da subjetividade que nos torna controlados biopoliticamente. Segundo David Harvey,
“o neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro (...) o neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo. O processo de neoliberalização, no entanto, envolveu muita destruição criativa, não somente dos antigos poderes e estruturas institucionais (chegando mesmo a abalar as formas tradicionais de soberania do Estado), mas também das divisões do trabalho, das relações sociais, da promoção do bem-estar social, das combinações de tecnologias, dos modos de vida e de pensamento, das atividades reprodutivas, das formas de ligação à terra e dos hábitos do coração.” [2]
Para pensarmos o urbanismo e a produção do espaço no sistema neoliberal imperial, é preciso estarmos atentos à tomada do Estado pelo capital, que agora atua de dentro dos processos políticos institucionais e por meio de mecanismos de gestão pública, gerando políticas e instrumentos urbanísticos que fazem parte, muitas vezes, como é o caso do Brasil, do próprio Estatuto da Cidade . Atualmente, um dos exemplos mais claros disto, é o instrumento denominado Operação Urbana Consorciada , uma espécie de Parceria Público Privada que determina as regras do jogo para o uso e a construção do espaço, gerando territórios determinados por manifestações de interesse do próprio mercado, conformando territórios pré-definidos para investimentos e projetos que gerem mais-valia para o Estado através de títulos . Visivelmente uma passagem das formas de exploração da mais-valia que se dava na fábrica em tempos de capitalismo fordista, e agora se dá no território urbano gerando lucro via renda, dentro da lógica do capitalismo financeiro pós-fordista ou rentista.
Do ponto de vista urbanístico, estas políticas públicas se dão em diversos níveis e, mesmo quando não há o uso explícito destes instrumentos neoliberalizantes, a lógica das gestões das cidades contemporâneas, tanto no mundo quanto no Brasil, seja nos governos de esquerda, seja nos governos de direita, é a lógica da cidade-empresa, da especulação imobiliária, da gentrificação (enobrecimento e expulsão dos pobres que não conseguem viver mais nas áreas valorizadas), das políticas de revitalização (substituindo vidas pobres por vidas ricas e turismo), das intervenções utilizando equipamentos culturais (museus, bibliotecas, salas de música e afins), do planejamento estratégico que faz surgir novas centralidades urbanas para que o capital se expanda para novos territórios e possa fazer circular recursos dentro do sistema empreiteiras-bancos. Estas lógicas encabeçam o eixo da gentrificação de grandes regiões, principalmente nos centros das cidades que já detêm meios de transporte e serviços abundantes. E, perversamente, em muitos momentos, é utilizando o discurso da arte, da cultura, da melhoria do espaço, do embelezamento e da segurança que o Estado-capital com seu biopoder (poder sobre a vida) avança por toda a cidade expropriando os bens comuns já existentes ou em processo de formação.
Segundo Pelbart (2011), o biopoder está ligado com a mudança fundamental na relação entre poder e vida. Na concepção de Foucault, o biopoder se interessa pela vida, pela produção, reprodução, controle e ordenamento de forças. A ele competem duas estratégias principais: a disciplina (que adestra o corpo e dociliza o indivíduo para otimizar suas forças) e a biopolítica (que entende o homem enquanto espécie e tenta gerir sua vida coletivamente). Nesse sentido, a vida passa a ser controlada de maneira integral, a partir da captura pelo poder, do próprio desejo do que dela se quer e se espera, e assim o conceito de biopoder se expande para o conceito de biopolítica. Há uma diluição dos limites entre o que somos e o que nos é imposto, à medida que o poder atinge níveis subjetivos passando a atuar na própria máquina cognitiva que define o que pensamos e queremos. Segundo Pelbart, “nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida, como nessa modalidade contemporânea do biopoder” [3], que podemos chamar de biopolítica." [4]